domingo, 16 de janeiro de 2011

Falência Múltipla

Artigo publicado no O GLOBO - 16/01/2011.
Por Dorrit Harazim

Em tempos normais, água é água, rocha é rocha, terra é terra. Em tempos normais, asfalto fica onde é colocado, casas abrigam moradores e sonhos, a vida se distingue da morte. Foi com fúria que a avalanche desta semana na Região Serrana do Rio amalgamou água, rochas, terras árvores, asfalto, casas e pedaços de vida, desfigurando cada elemento num conjunto irreconhecível. Algo semelhante ocorreu com as notícias do dia a dia não relacionadas com a tragédia. Em tempos normais, esporte é esporte, política é política, o mundo (sobretudo o terceiro) não é o Brasil. Não mais. Uma torrente de indignação corre paralela ao drama serrano e tritura o resto do noticiário num “pastone” aberrante da vida nacional.

De repente, pareceu quase obsceno o êxtase dos 20 mil torcedores do Flamengo que acorreram à Gávea na tarde de quarta-feira para festejar a contratação de Ronaldinho por US$ 27 milhões. As reportagens dos enviados especiais ao Haiti, que retratam o painel de horrores um ano após o terremoto de 2010, poderiam constar do noticiário local – a teimosia da população em querer sobreviver apesar da falência múltipla é a mesma. Nunca antes na história recente do país o Brasil se mostrou tão medieval em relação à Austrália. Atingia por enchentes de proporções mais selvagens do que as nossas, a província de Queensland não dependeu da solidariedade individual – a ampará-la tinha as instituições, a estrutura e os serviços coletivos.

A “tempestade-tsunami” australiana, que neste início de janeiro atingiu uma área maior do que a soma dos estados de São Paulo e Minas Gerais, teve tudo para colocar de joelhos a terceira maior cidade do país. O relato feito ao jornal “Los Angeles Times” por um morador de Brisbane, que teve mais de 30 mil casas submersas, dá uma ideia: “Talvez o momento mais aterrador foi quando a energia elétrica acabou. Um silêncio total cobrindo uma metrópole é assustador. Você só ouvia a fúria do vento assaltando a cidade e o gemido absurdo de um alarme de automóvel. Pareceu o fim do mundo. Nesse momento, dois helicópteros Black Hawk surgiram do nada.” Balanço da calamidade na Austrália: 25 mortos.

Pela leitura do noticiário político, a emissão de passaportes diplomáticos para o lazer, ócio ou comodidade da parentela de homens públicos consegue chegar às mãos dos beneficiados em 48 horas. Questão de prioridade. Difícil não estranhar que foram necessárias 72 horas antes que o primeiro helicóptero das Forças Armadas (para salvamento sem necessidade de pouso) aparecesse nos céus da Região Serrana. Nossas lembranças mais recentes de fotos de câmaras frigoríficas para o acondicionamento de cadáveres data do mês de setembro de 2001. Mais especificamente, dos dias que se seguiram ao ataque terrorista às Torres Gêmeas em Nova York. Pode-se teorizar de mil e um ângulos sobre o atentado múltiplo que fez 2.977 vítimas e reescreveu a geopolítica mundial. Mas nem o conspiromaníaco mais xiita é capaz de sustentar que o ataque, naquele local e na forma executada, era previsível.

Já os caminhões-frigoríficos estacionados desde a sexta-feira em Teresópolis, à frente de um necrotério improvisado, talvez não precisassem estar ali, repletos de corpos. Décadas de desmandos urbanos tornaram previsíveis os efeitos de uma natureza em combustão.

Na ausência do governador Sérgio Cabral, que precisou interromper as férias para estar ao lado da presidente Dilma Rousseff na visita oficial à região devastada, coube ao vice Luiz Fernando Pezão falar à imprensa na primeira hora. Por rotineira, bem intencionada e aparentemente neutra, uma frase passou despercebida em meio a tanta tragédia. “Esse é o momento de ver o que pode ser feito para resolver a situação dessas pessoas”, disse Pezão. Lida com mais vagar, a frase soa quase pornográfica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário